quarta-feira, 9 de julho de 2014

Samba Canção





    Se disser que eu desafino, amor, pode ter certeza que vou deixar de cantar perto de você. Eu brinco com os instrumentos enquanto você cozinha. Toco pandeiro enquanto você tempera o peixe. Sua casa é tão limpa que assusta. Asséptica, quase hospitalar. Penso, enquanto tento tirar um som qualquer do violão. Acendo um cigarro, você manda apagar, fala do cheiro, abre a janela com rispidez. Não olha nos meus olhos nem quando está com raiva, com essas covinhas no rosto que me enleva.
   Apuro meus sentidos, buscando o aroma que foge da cozinha para a sala. Você continua indiferente, com a saia estampada de flores miudinhas na altura do joelho. Sempre gostei dos seus joelhos.
   Queria que me visse por dentro, agora. Mas toda sua concentração vai parar na porta da geladeira, quando pego uma cerveja e você tira a latinha da minha mão, dizendo que vamos tomar vinho branco no almoço. Minto. Invento uma desculpa esfarrapada e saio do apartamento. Na calçada, pessoas sobem e descem a Augusta movimentada nesse sábado que poderia ser tão agradável se nós não.

   Lembro quando você fazia planos de ter filhos comigo e cortava meu cabelo no banheiro, com tanto carinho. Quase sinto o toque que sua mão tinha antes. Suave, quente.
   Mas agora daria tudo por um amor expresso, desses que a gente embala pra viagem. Não me engano mais com sua boca bem delineada pelo batom caro comprado com a grana da bolsa de “doutoranda”, como faz questão de frisar quando lembra a minha falta de dinheiro e de futuro.
    Percebo que há muito não queria mais receber seus telefonemas, cada vez mais raros. Mas acabo sem ter onde passar o fim de semana nessa cidade que nunca foi minha. Vou ao seu apartamento, onde encontro os instrumentos deixados no canto da sala pelo teu mais novo ex-qualquer-coisa. Como sou fraco, nessas horas. Me habituei a essa comédia de erros em que se transformou nossa relação desde o ponto final (ou as reticências?).

    Conferi se a carteira estava no bolso. Parei o primeiro ônibus que passava no ponto em frente ao seu prédio. Vou ficar longe da sua limpeza, das suas frases feitas, da sua superioridade em relação a nós e também desse peixe cheio de ervas e futilidades. Vou procurar, daqui por diante, nunca mais me perder de novo. Preciso andar.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Quatro Anos, Cinco Meses e Seis Dias

                                                               
                                     

    Mesmo muito novo, eu não era alheio ao mundo em redor. Muito pelo contrário: á tudo eu media e diferenciava, e me interessava bem mais naquilo que poderia fornecer-me algum prazer do que algo que me forneceria alguma diversão, se bem não entendia muito bem o pleno significado do prazer naqueles meus anos castos e gloriosos. As primeiras descobertas de uma criança, se não assustadoras, são confusas e patéticas, e já que carregamos elas pelo resto de nossas vidas, tendemos à sacramentar esses idos momentos de curiosidade e fascinação, como no dia longínquo em que eu, por um motivo qualquer fui até a cozinha da minha casa e topei com minha mãe entre os braços de um outro homem que com certeza não era o meu pai. Mamãe continuava vestida, mas fiquei confuso ante o fato de que o homem, que eu jamais havia visto antes ou depois disto, estava com as calças arriadas, e a coisa entre as suas pernas peludas - semelhante a coisa que havia entre as minhas, porém dez vezes maior - permanecia rígida e tersa, como um pedaço de madeira. Não haviam percebido minha silenciosa entrada no recinto, o que era compreensível no momento - estavam eles profundamente entregues ao ato de beijar-se, e o faziam com avidez e espalhafato. Eu fiquei estupidificado - não entendia absolutamente nada do que se passava. Encostados ao fogão, eles sorriam e se beijavam, e observei quando mamãe, enquanto sussurrava algo rápido - e certamente engraçado, talvez uma piada, pois o homem respondera com um riso cristalino - agachara-se até tocar ambos os joelhos nos ladrilhos da cozinha. Porém, segundos (talvez milésimos) de fazer o que hoje em dia compreendo perfeitamente o que faria, murmurei: "Mãe?"
   
   - Oh, porra! - exclamou o homem, abaixando-se feito um raio para levantar os jeans e afivelar o cinto de couro negro. Dada a posição ajoelhada de minha mãe - como se rezasse - a cabeça do estranho, com os cabelos lambuzados de gel fixador, chocara-se contra o ombro esquerdo dela, produzindo um ruído surdo - Merda! Merda! - num íncrivel reflexo contínuo, o pinto do cara, agora totalmente molenga, desaparecera além duma ridícula cueca laranja-abóbora.
    
    Enquanto se ouvia os tinidos da fivela do cinto sendo fechado, mamãe postara-se como uma estátua de cobre ao seu lado, e a sensação que me invadiu ao observar sua expressão fora a mesma que tive quando arremessei um tijolo contra um filhote de gato que passeava despreocupadamente no quintal de casa. O animal, não percebendo o perigo que se aproximava, foi tragado por ele - o projétil espatifara sua pequena cabeça. Lembro que não fora aquela a minha verdadeira intenção, nem sei por que cometi tal crueldade, mas ao testemunhar o gatinho ser por minhas mãos trucidado, eliminado sem defesa alguma, assassinado sem julgamento ou pena, aquilo me doeu, e doeu muito. Entrei em casa correndo e chorando e contei à minha mãe o que fizera, reiterando que não fora de propósito. Ela, então, me levara pela mãozinha gorda até o local do assassinato, e dotada de imensa paciência, orientara que prestasse o mínimo de respeito ao cadáver, sepultando o mesmo no terreno baldio que situava-se na esquina da minha rua. Finda a tarefa, houvera por parte dela uma ligeira preleção sobre a importância das vidas alheias, sobre impensadas atitudes (ainda que não tivesse usado tais palavras) e uma concisa reflexão sobre amar ao próximo que, na época, muito me confundira. Mamãe me acalmara, mas o temor experimentado daquele dia ficaria para sempre gravado à fogo em meu ser. E agora, olhando por outro lado o prisma das circunstâncias, era ela que tinha arrebentado a cabeça do filhote de gato - ela me olhava como se esperasse e temesse uma ríspida censura, como se já adivinhasse que eu certamente ordenaria o sepultamento do animal.
   
   - O que foi, filho? - perguntou, um devastado e efêmero sorriso no rosto que sempre fora bonito.
   
   - O que tá fazeno?
    
    O estranho começou á rir. Eu sorriria também, não tivesse completamente desnorteado. Mamãe olhou para ele portando nos olhos lacrimejantes um protesto mudo e sem corpo.
   
   - Esse é o amigo da mamãe e do papai. Estavámos brincando, isso apenas.
   
   - Isso mesmo, estávamos só brincando! - disse o homem, na voz uma indizível diversão. E mamãe:
   
   - Porquê você não continua brincando lá fora? O que aconteceu?
   
   - O sol tá quente dimais.
   
   - Tive uma ideia - disse o homem - Que tal um sorvete? Cairia bem nesse calorão, né?
   
     Apanhou sobre a geladeira uma densa carteira de couro. Entre documentos, cartões de visita amassados, recibos esquecidos e holerites manchados de graxa, apareceu uma nota suja de cinco pratas. "Tó. Compra um sorvete, pra tu e pros teus amiguinhos. Ou qualquer outro doce, se tu quiser."
   
    Não bastara o dinheiro sujo, que lograva comprar o meu silêncio, para também conquistar o meu afeto. Estávamos brincando; odiei-os por isso - ódio confuso e incompreensível, potenciado pelo claro fato de que mamãe brincava com o estranho de uma maneira que jamais a vi brincando com meu pai. Durante a existência da ligeira pausa que se seguira ao oferecimento da propina, eu os avaliava, aquecido sobre o manto da desconfiança; mamãe por vezes, em seus frequentes momentos de bom humor, brincava comigo, fazendo-me cócegas, cobrindo meu rosto de beijos úmidos e soprando forte minha barriga, produzindo um som de intensa flatulência que muito me divertia. À noite, prestes à dormir, recebendo sereno a sua recomendação de dormir com Deus e com os anjos (Não, com os anjos não! eu dizia sempre, movido por um temor inexplicável pelos assistentes de Deus), mamãe curvava-se sobre mim e aplicava leve beijo em meus lábios pequenos. Também seria essa uma brincadeira semelhante àquela, com o estranho?
   
  - Vai, gordinho; vai lá comprar teu sorvete - disse o homem, gesticulando com a mão cheia de anéis.
  
     Eu segurava a nota encardida, uma quantia muito além do que já recebera naquela minha airosa infância; eu estava rico, mas por que não estava feliz?
   
   - Vai, filho - pediu minha mãe, quase encarecida.
    
    Uma conclusão incompleta e opaca de criança iluminou-me as ideias: talvez mamãe não ousasse brincar daquele jeito com papai porque ambos se encontravam numa posição além de qualquer brincadeira, como os meninos que beijam e tocam as partes secretas das meninas no terreno descampado atrás da escola, mas que não seriam capazes de repetirem a façanha com as suas irmãs. Ao que me concernia, o inferno aguardava em insidiosa fervura àqueles que beijavam e tocavam os segredos das próprias irmãs - também seria assim em relação aos nossos pais? Era certo que os prometidos casais, através da sacralização do casamento, tornavam-se uma só alma, um só sangue, um só coração, à ponto de parentelarem-se, rebentos do mesmo Pai, irmãos-cônjuges de diferentes famílias, entes não-consanguíneos? Ocorreu-me que se constituiria pecado mortal caso os pais brincassem daquele jeito entre si, e tal como eu, que xingava e pulava e batia nos amigos da escola à guisa de diversão, sabendo muito bem que tais ações seriam severamente punidas se, por exemplo, esses amigos fossem simplesmente meu pai, mamãe - sempre uma brincalhona - procurava acertadamente se divertir com qualquer um que pudesse desprender-se de um tempinho para aceitar suas brincadeiras, como que protestando contra o respeito que a impedia de brincar assim com papai. E quem melhor que os amigos para nos divertir em momentos de incômoda solidão, esses momentos que sempre eclipsavam o brilho acastanhado dos olhos de mamãe? Ela sempre fora solitária - era claro que mereceria divertir-se, sorrir, ter amigos; eu sempre quis o bem dela. E, naqueles concisos e detalhados minutos, eu quis, mais do que qualquer outra criança da minha idade, ser conhecedor de tais brincadeiras.
   
   - ´tá bem - assenti, premindo a mão sobre a nota suja de cinco que se umedecia com o suor. Enquanto cruzava a porta de entrada, fui ainda alcançado pela recomendação materna:
   
   - Não vá muito longe, meu bem!
    
    Enquanto descia as escadas para o térreo, com a minha fortuna bem segura na mão direita, o que me veio à cabeça, uma imagem recente e tão violenta quanto um golpe contra uma criança, fora o pinto do cara. Grande, torto e peludo, muito peludo. Certificando-me da ausência de testemunhas, escondi-me no espaço bagunçado sob a escada, comumente utilizada pelo senhorio como um depósito para as inúmeras garrafas de cerveja vazias consumidas em seu boteco de esquina; em segurança nessa solidão, por entre vasilhames empoeirados e trincados nos respectivos engradados, abaixei meu short azul até os calcanhares e me examinei. Ele ainda era bem pequeno, lembro-me da comparação à uma larva de borboleta que naquele momento me sobreveio á cabeça, mas muito me admirou o fato de que ele, futuramente, seria munido da específica habilidade de crescer à olhos vistos, como se estivesse vivo, açodado por estímulos variados, desde visuais até tácteis. Massageei-o com os dedos e obtive a certeza de que essa habilidade eu receberia com o tempo. Mas permaneci feliz com a descoberta, com os tempos áureos que me aguardavam e com a revelação da sorte de ter nascido homem - somos por Deus presenteados gratuitamente com algo que muito diverte as mulheres, enquanto entediadas e solitárias. Tal como mamãe tão alegremente fazia com o seu amigo.
    
    Vesti-me novamente e dispunha à ganhar a rua e obter os prazeres efêmeros que poderia proporcionar uma nota de cinco pratas à uma criança quando, seguido pelos seus próprios e pesados passos, descia pela escada o estranho amigo de mamãe. Alcançara os degraus mais baixos, levara aos lábios espessos o único cigarro de um amassado maço de Free apanhado no bolso do jeans surrado e se imobilizara ao me ver, nos olhos uma surpresa misturado, pouco depois, à um maldito divertimento. Parado ao pé da escada, com gestos pacientes e ligeiramente cansados, riscara o fósforo - por um minuto pensei que a pequena chama queimaria parte do seu bigode negro - acendeu o cigarro, abanou o fósforo pra matar o fogo, amassou o maço vazio e lançou-o à um canto. Um sorriso insolente aparecera lento sob a bigodeira.
   
   - Dê lembranças ao seu pai, gordinho - disse ele ao passar por mim a afagar as ondas louras da minha cabeça. Atravessou o portão gradeado e ganhara a avenida. Foi a ultima vez que o vi.
    
    Enquanto observava o estranho amigo dos meus pais entrar numa Kombi branca e sair em disparada rua abaixo, fui estranhamente, ainda que de maneira um tanto tardia, avassalado por uma ânsia peculiar, algo que me adoçava e boca e me fazia tremer. Eu não sabia o que era, só tinha a certeza de que era a mesma sensação que, por vezes, me invadia quando eu comia uma grande quantidade de doces. Naquele momento eu estava momentaneamente rico, havia sido brindado por profundas e esclarecedoras revelações que certamente fariam com que eu enxergasse o mundo de maneira diferente - havia ganhado dez anos num intervalo de dez notáveis minutos. Mas que segredo era aquele que cocegava as minhas partes secretas, que encrespava meus lábios, que alumiava meus olhos? Eu não saberia dizer, mas conhecia uma pessoa que certamente me ajudaria. Alguém que pudesse me ensinar, me guiar pelos cardos das novas descobertas, desse meu admirável universo particular que se espraiava dentro de mim, alguém que orientaria uma ávida criança em meio ao seu próprio big-bang. Ela, decerto, estaria agora escovando os cabelos na casa ao lado.

cont.



terça-feira, 11 de junho de 2013

Perda e Culpa






    Preciso discordar do Leminski naquele Nenhuma dor pelo dano/todo dano é bendito/Do ano mais maligno/Nasce o dia mais bonito.    
    Tive um ano do cão. Só a gente sabe dos danos que essa vida nos causa. E eu, olha, eu fiquei totalmente danificado. Algumas pessoas deixam um rastro tão maravilhoso na vida de outras que não consigo ver suas repentinas ausências de outra forma senão essa: um dano. Um rasgo. Um aleijão. E não, não passa. Nada passa. Tudo que nos acontece fica marcado de uma forma ou de outra em algum lugar. A gente pode até achar que passa, pode achar isso nos momentos bons, mas aquilo (leia-se saudade), fica lá, entranhado em você. Trauma pode se manifestar em forma de raiva, de desprezo consigo mesmo, pode virar uma repetição de padrão destrutiva, pode te deixar pra sempre com medo, pode te fazer ficar por demais destemido. O que consigo ver que aconteceu comigo é o seguinte: eu sequei. Me sinto todo esfarelado. Danificado. Rachado como um terreno arenoso onde é necessário um instinto filho da puta pra poder sobreviver. Até nasce uma coisinha ou outra ali, mas qualquer coisa mais delicada murcha e morre rapidinho. É assim que eu ando me sentindo. Calcificado por dentro.    
    Há algo que escrevi outro dia, um simples organograma (escrito de maneira apressada num bloquinho de rascunhos amarelos da empresa), que traduz muito o que sinto agora.

    

    A PERDA, E SUAS FASES.

Fase 1 - Negação: Nada disso está acontecendo. É um sonho.
Fase 2 - Raiva: Como teve o mundo CORAGEM de fazer isso comigo? FILHO DA PUTA!
Fase 3 - Depressão: Sim, aconteceu. E rasga por dentro.
Fase 4 - Ressurreição: Rasga mais cura. O negócio é um cicatrizante (resgate da própria vida)
Fase 5 - Ressurgimento e vida: (dispensa comentários)

*Eu queria não ser assim, tão dramático, não ser tão intenso, não ser tão. Maldito ascendente escorpião.
**(Minhas escusas, mas preciso culpar algo pra me sentir menos culpado).
***A desconfiança que me segue quando percebo que estou, nesse exato momento, entre a Fase 1 e a 3.

    
    

    Existe a perda, e existe a culpa. E agora invejo à todos os outros que não carregam dentro de si essas duas irmãs, como eu carrego.
    
    Agora, a culpa.
    
   Eu não sabia o que era a culpa, esse prisma escuro que muda nossa cabeça com o passar das épocas. Por essas e outras gostaria de voltar à ser criança, de voltar à me sentir culpado apenas porque não correspondi as expectativas dos meus pais nas evoluções escolares, ou quando derrubei o jarro de cerâmica da sala, que espatifara ao chão em mil pedaços. 

    Agora choro, como as crianças, se bem que não de maneira tão inocente, ainda que sincera, como elas. É a minha culpa que faz com que eu enfrente e me conforte com a dor dos punhos cerrados, quando, em meio às lágrimas surdas, começo à socar as paredes. Auto-flagelação, foi o que disse a minha terapeuta de olhos doces. A culpa é minha, a decisão de socar as paredes é minha, e se me sinto bem com isto, o que vale a opinião alheia? Admito que não saberia responder se me dissessem por quem eu sinto tanta culpa. Nada poderia eu fazer quanto ao destino irremediável que se abatera sobre mim, seria a resposta mais plausível. Mas seria apenas essa a resposta que eu deveria lançar ao mundo? Odeio muito o fato de que, se a mim fosse dado o luxo de retornar ao passado, eu retornaria apenas para fazer tudo de novo, e quase da mesma maneira: amar do mesmo jeito que a amei, beijar do mesmo jeito que a beijei, brigar do mesmo jeito que costumávamos brigar, pelo mais tolos dos motivos. O diferente, apenas, seria: haveria mais carinhos, menos impaciência e mais atitude - foi a falta desta que a condenara, e que foste castigada pelas minhas mãos, que você sempre imaginara amorosas para contigo. Você estava sem forças, e eu deveria ter lutado no seu lugar, para salvaguardar-lhe a vida. Era o minimo que eu deveria ter feito. Reside aí a minha culpa.

    Esses textos horríveis se tornaram a forma mais benévola de expiação. Para mim, é uma distração necessária. Mas não posso, infelizmente, afundar-me ainda mais no mar dessas escritas, pois ainda vivo e vivo, ainda que de modo automático, como um boneco cheio de estopa e serragem. E é quando estou longe dessas distrações que ela vem e se achega, a culpa, como um pássaro enorme, fedorento, de olhos vermelhos, garras afiadas. Choro baixo, relembrando sorrisos e trejeitos, vozes infantis e banhos tomados em conjunto, o hábito de dormir até tarde num dia de domingo, o vídeo-game jogados em conjunto, cada música, cada pedaço de goiaba mordida, doida que era por goiabas. A culpa vem e me cobre de maneira rude, como se eu fosse uma puta. Dou um ou dois socos na parede, penso em remédios e giletes, e adormeço com umas primeiras linhas de um possível texto melancólico já fresco na mente.

    A questão é: sinto que não sei mais sentir, não sei mais me deixar sentir, não sei mais me entregar. O foda é que fingir é comigo mesmo, finjo pra agradar, pra satisfazer e eu que me fodo. Nunca pensei que passaria por isso. A única vantagem é que não quebro mais a cara porque procurarei não mais cair, e se cair, não tem sangue pra jorrar, não tem coração pra bater, não tem porra nenhuma já há alguns meses. Eu até tentei mentir que tinha e só consegui sentir ódio. Ódio de mim, ódio do que está acontecendo comigo, ódio desse presente de grego que me deram e uma frustração inenarrável. Acho que agora posso dizer que esse sou eu. Eu era um pedaço de uma coisa feliz, um fragmento pequeno e incompleto de um cara satisfeito com a vida que pensei, realmente pensei, que vingaria e que iria perdurar por um bom lapso de tempo. Bom, eu tentei, mas mal sabia eu que alguma coisa conspirava quanto à isso. E agora, que tudo já passou (ou não passou, sei lá), eu sinto muito, mas eu não sinto mais nada. Apenas a saudade que ela deixou.

    Por ora, me levanto, me refaço e me desfaço por todos os dias que me sobrarem de vida.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

A Balada do Amor Recém-Descoberto








    Porque é assim mesmo, 
    
    amor dói, é lindo e fodido e difícil e maravilhoso e extasiante e cansativo, exaustivo, agônico e longe de feliz para sempre. Muitas vezes será feliz mesmo e seremos iluminados, luzidios, morrendo de tesão e candura, nadando em luxúria infinita, indivisíveis. Uma hora o indivisível se divide para que um e um possam ser dois e um. 

                                         Sei que chegará uma hora em que tudo que você vai desejar é ficar só, quieta, no silêncio, sem ouvir nada além das vozes cruéis e gordurosas na sua cabeça. Não é hora de ir embora; é hora de calar e olhar para dentro. Sempre vou entender porque também preciso da solidão, preciso muito. Ninguém vive o tempo todo em função do amor senão morre, morre sufocado, morre seco e sem criar, morre obcecado e afogado em frustração. 

                                                                                         Amor comigo, meu Amor, nunca vai ser plácido. Os altos serão os mais altos que você jamais imaginou, os baixos eu vou controlar e nunca vou te afundar junto. Não sou água parada, sempre fui turbilhão, um turbilhão incontrolável de coisas desordenadas e esmagadoras e lindas, destrutivas e fecundas, irresistíveis e desumanas, posso ser devotado e incompetente, doce e amargo, categórico e insuportável, carente e fútil, apático e radiante, cada dia um pouco de uma coisa nova e sempre incandescente. 

Esse sou eu. 

                              Minha alma e tudo que sair de mim será assim e sua vida nunca será entediante. Às vezes você vai ter vontade de ir embora. Às vezes eu também. Não é fácil. O que não pode é se acovardar e fugir, isso não pode, não pode deixar o negrume vencer o que precisa ser argênteo, não adianta ir embora para descobrir que quer voltar de novo e de novo porque um dia eu não vou mais estar aqui. 

                                                                            Não quero que volte por ser viciada em mim, quero que você fique porque quer. Um dia minhas energias terão se esvaído e será o dia do fim. 

                                                                                                                                 O Fim. 

Se esse dia chegar – e não quero que chegue, não quero, não quero - vai ser mais uma das minhas mortes. mas ainda tenho algumas vidas para gastar, algumas saúdes pra flagelar. Não vou acabar. Não acabo. Provavelmente farei de novo e de novo depois de lidar com o fracasso, depois de chorar muito e não acreditar em nada, bem como faço atualmente.

                                  Me regenero e volto. Eu não vou acabar, não enquanto acreditar em coragem, certeza e amor sólido. O resto não me derruba. Se derrubar eu já aprendi a cair em pé e voltar a respirar.

                                                                            Mas eu prometo, com as mãos ainda pensas, palmilhando por esse caminho que está levando à ti (apresentar-lhe-ei Drummond, minha linda) que não terei por ti a mesma benquerença que tive pra'quela por quem esmoreci morbidamente pela repentina ausência; os amores, ainda que sólidos, ainda que não sejam secretos nem eternos, são diferentes um do outro. À ela dei o melhor e o pior de mim, amando-a como um louco pelos dias que se passaram;

                                                                                                                             à você darei o melhor e o pior de mim, amando-te com um louco pelos dias que se seguirão. 

E o resto, todo ele, não importa. Lembremos de sermos felizes. Ainda podemos achar a felicidade, ainda podemos amar. Somaremos à este mundo àqueles tipos de casais que, quando se olham, rola a mágica de quando uma chocólatra olha uma barra de chocolate branco. Seremos necessários um ao outro. E essas nossas necessidades se baseará em noites mal dormidas com mensagens simplórias pelas madrugadas, tudo isto regado à sorrisos bobos e rascunhos de cartas mal escritas.

                                           Vou te esperar todos os dias, independente de todas as tuas direções, após a epifania de que em todos esses anos só existiu você. Desfilaremos felicidade pelas ruas. O dia e o esquecimento não vão cair, não voltarei à vida de pingue-pongue, aqui-e-lá com a única certeza da distância da sanidade. Não atenderei, um dia desses, o telefone e me entregarei finalmente à presença da solidão, chutando a quentura da humanidade para a sarjeta mais próxima, para nunca mais voltar. 

                                                                                                                             Não com você.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Sobre Pernas Cruzadas






  um descanso, pra elas ou pra quem as cruza?
  Sempre tem aquele momento de descruzar,
  quando a perna tenta se safar,
  onde não encontra mais conforto,
  fugindo da dormência do corpo;

  o que não dizer sobre pernas cruzadas:
  são como dois braços formando um deslaço,
  constatação: não é muito fácil dizer "o que não dizer" sobre alguma coisa.
  Escrito na hora, sem pensar muito,
  liberdade no dedilhar do teclado,
  sem olhar pro tempo ou pro lado.

  Minto; olho para o lado
  e agradeço à Sharon Stone pela pífia inspiração.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Crônica alegre, exceto pelo fato de ser mórbida









    Não tinha vícios, exceto a televisão, o cigarro e a bebida. Horas e horas esparramado em seu sofá, diante da TV soberana, devorando batata frita e hambúrguer, cercado por onipresentes latas de cerveja, cheias e vazias, as pernas abertas dando espaço para a banha protuberante que lhe escapava pela cueca úmida, e pareciam amalgamar com o tecido desgastado do sofá.

    Não era um antissocial, exceto pelo fato de não conversar com uma pessoa há mais de uma semana, já que os últimos dias haviam sido de uma intensa agitação na novela das 8, de muita emoção no seu reality show preferido, muita criatividade nos programas de auditório dominicais – sem falar na fase decisiva do campeonato de futebol da primeira, segunda e terceira divisão, cujos jogos, ele não perdia nenhum.
    Não era um cara solitário, muito embora nunca tivesse namorado a sério, sendo abandonado pelas paqueras quando a repulsa assumia o controle, diante do seu incorrigível comportamento anti-higiênico. Não que fosse insensível, mas achava sua vida tão perfeitamente completa e emocionante que a inserção de novos personagens só tornaria a peça cansativa.
    Não podia ser considerado um vagabundo, apesar de viver às custas da aposentadoria do pai falecido e da mãe que fazia questão de viver sozinha, além do aluguel que recebia do apartamento da família. Segundo ele, sua função era fazer a máquina do capitalismo girar. E fazia isso com um prazer assustadoramente relevante. Os parentes costumavam reclamar, até que ele desligou o telefone e não atendeu mais a porta – eles sempre iam ao seu apartamento nas melhores piadas do sitcom de sábado a noite, aí era foda.
    Não era exatamente um ser morto, exceto pelo fato de já ter infartado muito antes desta crônica começar a ser escrita, e até agora, ainda não ter sido descoberto pelos vizinhos, já que o odor putrefato vindo daquele apartamento era algo que todos já estavam acostumados.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Perfeita Imperfeição


   







    "Se tem covinhas. já é automaticamente linda", penso comigo mesmo, entre um suspiro e outro, que foi o lapso necessário para o aparecimento da menina, que, leve e faceira, aparecera no lugar previamente combinado.

    Desde já, confesso: as covinhas me fascinam. 

    Há rostos e rostos no mundo, mas são os rostos das mulheres que se assemelham à rosas em meio ao mar de capins silvestres, que são os rostos masculinos. Em todas elas há beleza, mesmo as que são chamadas feias pelos costumes limítrofes da sociedade - essas ultimas são apenas donas de um tipo diferente de beleza, feias e belas ao mesmo tempo, como os quadros de Mondrian, como as modelos magérrimas das grifes europeias, como um ornitorrinco. Não costumo filtrar as belezas que me aparecem no dia-a-dia, ainda que geralmente filtrem a minha (ou a falta de). Nem sempre a beleza está naquilo que vemos, mas naquilo que nossa alma costuma ver, mas lamento a clausura que há na filosofia que permeia o mundo que vivemos, um mundo onde a estética espanca a poesia, onde a beleza não é mais vista como algo relativo, e sim com a abundância das bundas seminuas, à balouçarem através dos programas televisivos. Uma unica coisa, apenas, burla a minha fútil teoria do relativismo da beleza

    Se tem covinhas, já é linda.

    As pessoas são estranhas - eu, inclusive. Você certamente pensará: são só covinhas, nada mais. Outros, mais realistas e menos amados, tomará esse aspecto como uma simples e sutil imperfeição num rosto humano, tais como as sardas. Mas a verdade vos digo: não me privo ante o pensamento fortuito de que há um quê de duvidosa e sensual inocência numa mulher com covinhas. Não num seio parcialmente à mostra, não numa bunda arrebitada, não numa pessoa que se orgulha em poder realizar um "quadrado de 8", o que quer que seja essa porra; aproveito a natureza egoísta e individual dessas mal-afamadas escritas e sussurro, apenas: covinhas.

    Imagino-as primeiramente, e o resto é construído por si só: um rosto redondo, umas bochechas rosadas, olhos limpidamente castanhos, lábios perfeitos. Ao meu lado, ela sorrira pela primeira vez, e as covinhas, belas imperfeições, apareceram de chofre. Todos esses sutis aspectos saltaram-me aos olhos desde a primeira vez que a vi, até o ultimo minuto.


    A cadeira de rodas foi só um mero detalhe.
 

(borderline) Copyright © 2011 -- Template created by O Pregador -- Powered by Blogger