Mesmo muito novo, eu não era alheio ao mundo em redor. Muito pelo contrário: á tudo eu media e diferenciava, e me interessava bem mais naquilo que poderia fornecer-me algum prazer do que algo que me forneceria alguma diversão, se bem não entendia muito bem o pleno significado do prazer naqueles meus anos castos e gloriosos. As primeiras descobertas de uma criança, se não assustadoras, são confusas e patéticas, e já que carregamos elas pelo resto de nossas vidas, tendemos à sacramentar esses idos momentos de curiosidade e fascinação, como no dia longínquo em que eu, por um motivo qualquer fui até a cozinha da minha casa e topei com minha mãe entre os braços de um outro homem que com certeza não era o meu pai. Mamãe continuava vestida, mas fiquei confuso ante o fato de que o homem, que eu jamais havia visto antes ou depois disto, estava com as calças arriadas, e a coisa entre as suas pernas peludas - semelhante a coisa que havia entre as minhas, porém dez vezes maior - permanecia rígida e tersa, como um pedaço de madeira. Não haviam percebido minha silenciosa entrada no recinto, o que era compreensível no momento - estavam eles profundamente entregues ao ato de beijar-se, e o faziam com avidez e espalhafato. Eu fiquei estupidificado - não entendia absolutamente nada do que se passava. Encostados ao fogão, eles sorriam e se beijavam, e observei quando mamãe, enquanto sussurrava algo rápido - e certamente engraçado, talvez uma piada, pois o homem respondera com um riso cristalino - agachara-se até tocar ambos os joelhos nos ladrilhos da cozinha. Porém, segundos (talvez milésimos) de fazer o que hoje em dia compreendo perfeitamente o que faria, murmurei: "Mãe?"
- Oh, porra! - exclamou o homem, abaixando-se feito um raio para levantar os jeans e afivelar o cinto de couro negro. Dada a posição ajoelhada de minha mãe - como se rezasse - a cabeça do estranho, com os cabelos lambuzados de gel fixador, chocara-se contra o ombro esquerdo dela, produzindo um ruído surdo - Merda! Merda! - num íncrivel reflexo contínuo, o pinto do cara, agora totalmente molenga, desaparecera além duma ridícula cueca laranja-abóbora.
Enquanto se ouvia os tinidos da fivela do cinto sendo fechado, mamãe postara-se como uma estátua de cobre ao seu lado, e a sensação que me invadiu ao observar sua expressão fora a mesma que tive quando arremessei um tijolo contra um filhote de gato que passeava despreocupadamente no quintal de casa. O animal, não percebendo o perigo que se aproximava, foi tragado por ele - o projétil espatifara sua pequena cabeça. Lembro que não fora aquela a minha verdadeira intenção, nem sei por que cometi tal crueldade, mas ao testemunhar o gatinho ser por minhas mãos trucidado, eliminado sem defesa alguma, assassinado sem julgamento ou pena, aquilo me doeu, e doeu muito. Entrei em casa correndo e chorando e contei à minha mãe o que fizera, reiterando que não fora de propósito. Ela, então, me levara pela mãozinha gorda até o local do assassinato, e dotada de imensa paciência, orientara que prestasse o mínimo de respeito ao cadáver, sepultando o mesmo no terreno baldio que situava-se na esquina da minha rua. Finda a tarefa, houvera por parte dela uma ligeira preleção sobre a importância das vidas alheias, sobre impensadas atitudes (ainda que não tivesse usado tais palavras) e uma concisa reflexão sobre amar ao próximo que, na época, muito me confundira. Mamãe me acalmara, mas o temor experimentado daquele dia ficaria para sempre gravado à fogo em meu ser. E agora, olhando por outro lado o prisma das circunstâncias, era ela que tinha arrebentado a cabeça do filhote de gato - ela me olhava como se esperasse e temesse uma ríspida censura, como se já adivinhasse que eu certamente ordenaria o sepultamento do animal.
- O que foi, filho? - perguntou, um devastado e efêmero sorriso no rosto que sempre fora bonito.
- O que tá fazeno?
O estranho começou á rir. Eu sorriria também, não tivesse completamente desnorteado. Mamãe olhou para ele portando nos olhos lacrimejantes um protesto mudo e sem corpo.
- Esse é o amigo da mamãe e do papai. Estavámos brincando, isso apenas.
- Isso mesmo, estávamos só brincando! - disse o homem, na voz uma indizível diversão. E mamãe:
- Porquê você não continua brincando lá fora? O que aconteceu?
- O sol tá quente dimais.
- Tive uma ideia - disse o homem - Que tal um sorvete? Cairia bem nesse calorão, né?
Apanhou sobre a geladeira uma densa carteira de couro. Entre documentos, cartões de visita amassados, recibos esquecidos e holerites manchados de graxa, apareceu uma nota suja de cinco pratas. "Tó. Compra um sorvete, pra tu e pros teus amiguinhos. Ou qualquer outro doce, se tu quiser."
Não bastara o dinheiro sujo, que lograva comprar o meu silêncio, para também conquistar o meu afeto. Estávamos brincando; odiei-os por isso - ódio confuso e incompreensível, potenciado pelo claro fato de que mamãe brincava com o estranho de uma maneira que jamais a vi brincando com meu pai. Durante a existência da ligeira pausa que se seguira ao oferecimento da propina, eu os avaliava, aquecido sobre o manto da desconfiança; mamãe por vezes, em seus frequentes momentos de bom humor, brincava comigo, fazendo-me cócegas, cobrindo meu rosto de beijos úmidos e soprando forte minha barriga, produzindo um som de intensa flatulência que muito me divertia. À noite, prestes à dormir, recebendo sereno a sua recomendação de dormir com Deus e com os anjos (Não, com os anjos não! eu dizia sempre, movido por um temor inexplicável pelos assistentes de Deus), mamãe curvava-se sobre mim e aplicava leve beijo em meus lábios pequenos. Também seria essa uma brincadeira semelhante àquela, com o estranho?
- Vai, gordinho; vai lá comprar teu sorvete - disse o homem, gesticulando com a mão cheia de anéis.
Eu segurava a nota encardida, uma quantia muito além do que já recebera naquela minha airosa infância; eu estava rico, mas por que não estava feliz?
- Vai, filho - pediu minha mãe, quase encarecida.
Uma conclusão incompleta e opaca de criança iluminou-me as ideias: talvez mamãe não ousasse brincar daquele jeito com papai porque ambos se encontravam numa posição além de qualquer brincadeira, como os meninos que beijam e tocam as partes secretas das meninas no terreno descampado atrás da escola, mas que não seriam capazes de repetirem a façanha com as suas irmãs. Ao que me concernia, o inferno aguardava em insidiosa fervura àqueles que beijavam e tocavam os segredos das próprias irmãs - também seria assim em relação aos nossos pais? Era certo que os prometidos casais, através da sacralização do casamento, tornavam-se uma só alma, um só sangue, um só coração, à ponto de parentelarem-se, rebentos do mesmo Pai, irmãos-cônjuges de diferentes famílias, entes não-consanguíneos? Ocorreu-me que se constituiria pecado mortal caso os pais brincassem daquele jeito entre si, e tal como eu, que xingava e pulava e batia nos amigos da escola à guisa de diversão, sabendo muito bem que tais ações seriam severamente punidas se, por exemplo, esses amigos fossem simplesmente meu pai, mamãe - sempre uma brincalhona - procurava acertadamente se divertir com qualquer um que pudesse desprender-se de um tempinho para aceitar suas brincadeiras, como que protestando contra o respeito que a impedia de brincar assim com papai. E quem melhor que os amigos para nos divertir em momentos de incômoda solidão, esses momentos que sempre eclipsavam o brilho acastanhado dos olhos de mamãe? Ela sempre fora solitária - era claro que mereceria divertir-se, sorrir, ter amigos; eu sempre quis o bem dela. E, naqueles concisos e detalhados minutos, eu quis, mais do que qualquer outra criança da minha idade, ser conhecedor de tais brincadeiras.
- ´tá bem - assenti, premindo a mão sobre a nota suja de cinco que se umedecia com o suor. Enquanto cruzava a porta de entrada, fui ainda alcançado pela recomendação materna:
- Não vá muito longe, meu bem!
Enquanto descia as escadas para o térreo, com a minha fortuna bem segura na mão direita, o que me veio à cabeça, uma imagem recente e tão violenta quanto um golpe contra uma criança, fora o pinto do cara. Grande, torto e peludo, muito peludo. Certificando-me da ausência de testemunhas, escondi-me no espaço bagunçado sob a escada, comumente utilizada pelo senhorio como um depósito para as inúmeras garrafas de cerveja vazias consumidas em seu boteco de esquina; em segurança nessa solidão, por entre vasilhames empoeirados e trincados nos respectivos engradados, abaixei meu short azul até os calcanhares e me examinei. Ele ainda era bem pequeno, lembro-me da comparação à uma larva de borboleta que naquele momento me sobreveio á cabeça, mas muito me admirou o fato de que ele, futuramente, seria munido da específica habilidade de crescer à olhos vistos, como se estivesse vivo, açodado por estímulos variados, desde visuais até tácteis. Massageei-o com os dedos e obtive a certeza de que essa habilidade eu receberia com o tempo. Mas permaneci feliz com a descoberta, com os tempos áureos que me aguardavam e com a revelação da sorte de ter nascido homem - somos por Deus presenteados gratuitamente com algo que muito diverte as mulheres, enquanto entediadas e solitárias. Tal como mamãe tão alegremente fazia com o seu amigo.
Vesti-me novamente e dispunha à ganhar a rua e obter os prazeres efêmeros que poderia proporcionar uma nota de cinco pratas à uma criança quando, seguido pelos seus próprios e pesados passos, descia pela escada o estranho amigo de mamãe. Alcançara os degraus mais baixos, levara aos lábios espessos o único cigarro de um amassado maço de Free apanhado no bolso do jeans surrado e se imobilizara ao me ver, nos olhos uma surpresa misturado, pouco depois, à um maldito divertimento. Parado ao pé da escada, com gestos pacientes e ligeiramente cansados, riscara o fósforo - por um minuto pensei que a pequena chama queimaria parte do seu bigode negro - acendeu o cigarro, abanou o fósforo pra matar o fogo, amassou o maço vazio e lançou-o à um canto. Um sorriso insolente aparecera lento sob a bigodeira.
- Dê lembranças ao seu pai, gordinho - disse ele ao passar por mim a afagar as ondas louras da minha cabeça. Atravessou o portão gradeado e ganhara a avenida. Foi a ultima vez que o vi.
Enquanto observava o estranho amigo dos meus pais entrar numa Kombi branca e sair em disparada rua abaixo, fui estranhamente, ainda que de maneira um tanto tardia, avassalado por uma ânsia peculiar, algo que me adoçava e boca e me fazia tremer. Eu não sabia o que era, só tinha a certeza de que era a mesma sensação que, por vezes, me invadia quando eu comia uma grande quantidade de doces. Naquele momento eu estava momentaneamente rico, havia sido brindado por profundas e esclarecedoras revelações que certamente fariam com que eu enxergasse o mundo de maneira diferente - havia ganhado dez anos num intervalo de dez notáveis minutos. Mas que segredo era aquele que cocegava as minhas partes secretas, que encrespava meus lábios, que alumiava meus olhos? Eu não saberia dizer, mas conhecia uma pessoa que certamente me ajudaria. Alguém que pudesse me ensinar, me guiar pelos cardos das novas descobertas, desse meu admirável universo particular que se espraiava dentro de mim, alguém que orientaria uma ávida criança em meio ao seu próprio big-bang. Ela, decerto, estaria agora escovando os cabelos na casa ao lado.
cont.